Em 1983, a farmacêutica cearense Maria da Penha sofreu sua primeira tentativa de homicídio pelas mãos do então marido, o professor universitário Marco Antonio Viveros. Sobreviveu, mas ficou paraplégica. Meses depois, Penha reviveu o horror pelas mesmas mãos. Apesar de a investigação ter começado no mesmo ano, a denúncia somente foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 1984 e o primeiro julgamento aconteceu só oito anos após os crimes.

Ao todo, Maria da Penha lutou por mais de 18 anos até ter seu agressor julgado e condenado pela justiça brasileira, em 2002, quando foi sentenciado a dois anos de prisão. A história – e luta – de Penha, compartilhada por milhares de outras mulheres brasileiras, chamou a atenção de ONGs internacionais e da Comissão Interamerciana de Direitos Humanos (OEA) que, pela primeira vez, aceitou uma denúncia de violência doméstica.

Como punição pela negligência e omissão em relação ao tema, a OEA recomendou ao Brasil a criação de uma lei específica para esse tipo de violência. Foi a semente que o país precisava. Quatro anos depois, em setembro de 2006, a Lei 11,340/06 – ou Lei Maria da Penha – finalmente entrou em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher deixasse de ser tratada como um crime de menos potencial ofensivo. “A Lei Maria da Penha é um marco que traz da invisibilidade para a visibilidade a violência contra a mulher. Por quê? Por que hoje a mulher tem um instrumento de proteção, e é esse instrumento que dá força a ela para fazer a denúncia”, destaca a juíza e coordenadora da Coordenadoria da Mulher, Iracy Ribeiro.

Juntas, Iracy, a psicóloga Adriana Torres, a socióloga e professora do Master Sabrina Dias e a delegada Flávia Félix protagonizaram o aulão especial do Projeto Enem na última terça-feira (22), que trouxe como tema a violência contra a mulher: “da violência simbólica à violência sexual, por que devemos falar?”.

“A ideia do tema surgiu das próprias alunas, que nos procuraram para conversar a respeito de algumas questões machistas que ocorrem diariamente em todo o universo social e expuseram essa preocupação”, explica Sabrina Dias. “Não por coincidência, ultimamente nós temos visto o crescimento de muitos dados ligados à violência contra a mulher. Apesar da Lei Maria da Penha e de já termos a Lei do Feminicídio, infelizmente, ao que parece, a violência contra a mulher não tem diminuído”, complementa a socióloga.

Segundo o Ipea, em 2016, na pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, encomendada ao Datafolha pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 29% das brasileiras relataram ter sofrido algum tipo de violência, mas apenas 11% procuraram uma delegacia da mulher. Mas, com a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio em vigor, por que a denúncia ainda não é uma realidade para todas que sofrem agressão?

“O maior desafio é enfrentar o medo: ele limita muito o ser humano em geral e o que nós notamos é que a mulher acaba ficando refém desse medo. Por conta do envolvimento de muitas questões afetivas, filhos, família, sentimentos relacionados ao agressor, a mulher teme denunciar. O maior fator limitante muitas vezes está dentro dela mesma”, constata a delegada Flávia Félix.

 

A psicóloga Adriana Torres concorda. “Muitas dessas mulheres precisam de um acompanhamento psicológico que se inicia, em muitos casos, antes mesmo de a denúncia ser feita”, explica. “Nos centros de referência, a mulher encontra o apoio de psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais que podem ‘facilitar’ esse processo de empoderamento que leva à denúncia”, complementa a psicóloga.

Transformação que começa na base

Especialista no estudo da sociedade, seus hábitos, costumes e como os mesmos relacionam-se entre si, a socióloga Sabrina Dias lembra a importância de trazer o debate da violência contra a mulher para a escola. “Nós estamos formando cidadãos e esse é um tema crucial para a vida desses adolescentes. Nós vivemos em sociedade, portanto, o que a gente faz aqui acaba voltando, somos sócios uns dos outros”, destaca. “A transformação que a gente busca através dessas palestras é justamente para que a sociedade seja melhor para as próximas gerações e para a nossa também, claro”, complementa Sabrina.

Aluno do Assistente Master, Ian Nogueira, 18 anos, aplaude a iniciativa. “Se a gente não discute isso na escola, como vamos ampliar esse debate na sociedade? Eu tenho certeza que alguma coisa foi semeada hoje, e que a violência contra a mulher vai ser discutida muito mais nas casas dos alunos que participaram do aulão”, ressalta Ian.

Larissa Santana, do Assistente A, se diz inspirada pelas convidadas do aulão. “Essas mulheres são incríveis. A gente ouve falar muito sobre a Lei Maria da Penha, mas de maneira rasa, e como mulheres que vivem essa realidade, que fazem parte desse universo, elas conseguiram desmistificar o tema”, explica. “O que nós ouvimos hoje nos fortalece enquanto mulheres e atua na conscientização dos meninos. É um modo de desconstruir essa cultura”, complementa Larissa.

Para o coordenador das 3as séries, Pré-Vestibular e Assistente Master, Anderson Peixoto, o objetivo do encontro foi alcançado com sucesso. “Debates como esse trazem à luz dados que chocam e mostram que a violência contra a mulher, ao contrário do que gostaríamos, tem aumentado. Esse é um dos modos que nós temos de contribuir para a transformação desse cenário: desconstruir para construir uma sociedade melhor para todos”, conclui Peixoto.